quarta-feira, 6 de agosto de 2014


Como o boi funciona: o abate e sua influência na qualidade da carne

O momento do abate dos animais, incluindo o período pré-abate, pode influenciar no rendimento e na qualidade da carne. O estado nutricional do animal, o período de descanso pré-abate e os métodos de processamento da carcaça propriamente dito são fatores que podem interferir no processo. Todavia, o fator que mais pode contribuir para a qualidade de carne é o ponto de abate, isto é, com que grau de terminação o animal é abatido. Isso é importante para se ter o mínimo de gordura de cobertura da carcaça que não comprometa a qualidade da carne.
O problema de carcaças mal acabadas, recobertas por menos tecido gorduroso do que o devido, é que elas resfriam de maneira muito rápida, pois falta  a “manta” de gordura que reduz velocidade do abaixamento da temperatura. Quando o músculo resfria muito rapidamente, ocorre um fenômeno chamado de encurtamento das fibras, no qual as fibras musculares se contraem definitivamente, resultando em uma carne excessivamente dura. Como a maciez da carne é o atributo mais ligado a sua valorização pelo mercado, esse é o principal motivo dos frigoríficos exigirem um grau de mínimo de terminação de carcaça, bem como pelo fato de um dos principais requisitos de programas de estímulo a melhoria da carne ser a espessura de gordura. Um mínimo de 3 mm de gordura (à altura da 12ª coluna) é recomendado e, tanto melhor quanto mais bem distribuída ela estiver.
Além disso, a gordura tem importante papel em dar sabor à carne, pois os compostos aromáticos (responsáveis por conferir sabor) ficam dissolvidos nela. Essa é a razão pela qual carnes com muito pouca gordura costumam ser insossas e, os cortes mais gordurosos, serem as mais saborosas, o que qualquer ida a um rodízio de churrasco permite facilmente comprovar.
Por fim, apesar da gordura não melhorar propriamente a maciez (medida de forma objetiva), aumenta a percepção de maciez (subjetivamente avaliada por um humano). Para entender isso, vamos supor que tenhamos dois pedaços de carne com igual maciez física, característica determinada friamente por um equipamento que mede a força necessária para rasgar a carne (força de cisalhamento). Esses mesmos dois pedaços, julgados por provadores, podem ser classificados de maneira diferente. Quase sempre, a carne com mais gordura acaba sendo considerada mais macia. Isto ocorre porque a gordura dá suculência à carne, aumentando a sensação de maciez por quem a mastiga.
Por ajudar na sensação da maciez, bem como dar suculência e sabor, não é de se admirar que os cortes mais caros sejam de carnes com mais gordura intramuscular, o chamado marmoreio. O marmoreio representa a gordura que fica entremeada ao tecido muscular e seu nome ilustra bem seu aspecto, uma vez que cortes com bastante desta gordura intramuscular chegam mesmo a lembrar uma superfície de um mármore vermelho e branco (ou amarelo, dependendo da cor da gordura).
Ainda que seja vendida por maior preço, é bom lembrar que o custo de produção desse corte é bastante elevado, pois a gordura intramuscular é a última a ser depositada, ou seja, trata-se de um animal abatido muito gordo.
Para minimizar a necessidade de levar o animal a pesos muito elevados, há raças com maior propensão para marmoreio que são utilizadas por quem explora o mercado de carnes diferenciadas, como as raças britânicas (Angus, Hereford, Devon), havendo, ainda, a raça Wagyu, do Japão, que seria a campeã de marmoreio. O nosso Nelore, opostamente, é do tipo que produz carne com pouco marmoreio. Nos pesos de abate praticados no Brasil, e com terminação preponderante com ganhos moderados em pastagem, de fato, o marmoreio é raro. É um bom exemplo que uma carne não precisa ser muito gordurosa pode ser ainda saborosa e, contra alguma expectativa negativa, parece que a carne brasileira tem admiradores ao redor do mundo.
Ainda com relação à carne produzida no Brasil, o fato dela ter menos gordura tem sido (aparentemente) pouco explorado no seu marketing, uma vez que a preocupação com a redução de ingestão de gordura pelos consumidores existe, Inclusive foi, e continua sendo, bastante explorado pelos produtores de aves.
Dos demais aspectos que podem interferir na qualidade da carne, o estresse causado por mal manejo pré-abate pode resultar em grandes prejuízos. Se o animal é submetido às situações estressantes, grande parte da sua glicose é consumida. É importante ter bons níveis de glicose, pois é exatamente o ácido lático produzido da degradação dela no pós-morte que causa acidez no músculo e permite uma série de reações necessárias para o processo de transformar músculo em carne.
Quando às reações subsequentes, que correspondem à degradação natural das fibras musculares por enzimas presentes no próprio músculo, não se processam adequadamente, temos uma carne de baixa qualidade, conhecida pelo acrônimo DFD (dark, firm and dry), ou seja, escura, dura e seca.
O interesse crescente em melhorar o conforto aos animais e o investimento na educação dos envolvidos para a lida menos agressiva possível ajuda, também, a manter os níveis de glicose corporal para um adequado abaixamento do pH da carcaça.
Essa preocupação de bom manejo pré-abate deve se estender ao embarque na fazenda. O envio de lotes homogêneos (e de preferência que já estejam juntos há algum tempo), o trabalho tranquilo dos peões, sem correrias desnecessárias, sem cães ameaçando os animais é importante. Um detalhe importante é que o embarcadouro não deve terminar em rampa, mas ser projetado para ter um último lance horizontal, pois isso evita com que os animais batam a garupa na entrada do caminhão boiadeiro, o que gera perda nessa região de cortes nobres.
O transporte, de preferência, deve ser feito aproveitando-se os horários mais frescos do dia. Ajuda muito se o caminhoneiro tiver consciência de que é carga viva e de como ele pode interferir no bem estar e qualidade do que transporta. Ele deve ser capaz de avaliar a lotação adequada, fazer espera de 20 minutos antes de iniciar a viagem, dirigir evitando solavancos e fazer as paradas recomendadas. No caso das paradas, há exigência legal para isso e ele deve conhecê-la. Felizmente, já faz algum tempo que tem-se investido bastante em treinamento e, hoje, há um contingente satisfatório de motoristas bem preparados, para os quais estímulo e reconhecimento por parte dos pecuaristas ajuda a manter esse ciclo positivo para a qualidade da carne.
No frigorífico, há ainda outras estratégias para melhorar a qualidade da carne durante o processamento. Muitos deles, por exemplo, submetem a carcaça do animal a um forte eletrochoque que ajuda a amaciar a carne. Em seguida, um corte incompleto é feito no local que divide o dianteiro do traseiro, o que também contribui para melhorar a maciez. Por fim, a carcaça é colocada na câmara frigorífica que, idealmente, deveria ser programada para aumentar o frio de maneira crescente e controlada. Todavia, isso é impraticável, pois seriam necessárias muitas câmaras frigoríficas para trabalhar com cada “batelada” de carcaça.
Por fim, ainda pode haver o processo de maturação, geralmente por 7 ou 14 dias (ou mais), no qual a carne é deixada em temperaturas baixas para sua conservação, mas em que ocorre atividade das enzimas que degradam as fibras. Esse processo, normalmente, melhora bastante a maciez da carne, mas também é feito apenas numa porcentagem pequena do total de carne produzida.
A recompensa por tanto zelo em todas as fases é um produto que tem grande apelo de consumo. A carne é um dos alimentos cujo consumo tem maior resposta de aumento em função de aumento de poder aquisitivo. O desafio da cadeia é continuar (e reforçar) os motivos que levam os consumidores terem esse desejo tão grande pela carne.

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