Como o boi funciona: o abate e sua influência na qualidade da carne
O momento do abate dos animais,
incluindo o período pré-abate, pode influenciar no rendimento e na qualidade da
carne. O estado nutricional do animal, o período de descanso pré-abate e os
métodos de processamento da carcaça propriamente dito são fatores que podem
interferir no processo. Todavia, o fator que mais pode contribuir para a
qualidade de carne é o ponto de abate, isto é, com que grau de terminação o
animal é abatido. Isso é importante para se ter o mínimo de gordura de
cobertura da carcaça que não comprometa a qualidade da carne.
O problema de carcaças mal acabadas,
recobertas por menos tecido gorduroso do que o devido, é que elas resfriam de
maneira muito rápida, pois falta a “manta” de gordura que reduz
velocidade do abaixamento da temperatura. Quando o músculo resfria muito
rapidamente, ocorre um fenômeno chamado de encurtamento das fibras, no
qual as fibras musculares se contraem definitivamente, resultando em uma carne
excessivamente dura. Como a maciez da carne é o atributo mais ligado a sua valorização
pelo mercado, esse é o principal motivo dos frigoríficos exigirem um grau de
mínimo de terminação de carcaça, bem como pelo fato de um dos principais
requisitos de programas de estímulo a melhoria da carne ser a espessura de
gordura. Um mínimo de 3 mm de gordura (à altura da 12ª coluna) é recomendado e,
tanto melhor quanto mais bem distribuída ela estiver.
Além disso, a gordura tem importante
papel em dar sabor à carne, pois os compostos aromáticos (responsáveis por
conferir sabor) ficam dissolvidos nela. Essa é a razão pela qual carnes com
muito pouca gordura costumam ser insossas e, os cortes mais gordurosos, serem
as mais saborosas, o que qualquer ida a um rodízio de churrasco permite
facilmente comprovar.
Por fim, apesar da gordura não melhorar
propriamente a maciez (medida de forma objetiva), aumenta a percepção de maciez
(subjetivamente avaliada por um humano). Para entender isso, vamos supor que
tenhamos dois pedaços de carne com igual maciez física, característica
determinada friamente por um equipamento que mede a força necessária para
rasgar a carne (força de cisalhamento). Esses mesmos dois pedaços, julgados por
provadores, podem ser classificados de maneira diferente. Quase sempre, a carne
com mais gordura acaba sendo considerada mais macia. Isto ocorre porque a
gordura dá suculência à carne, aumentando a sensação de maciez por quem a
mastiga.
Por ajudar na sensação da maciez, bem
como dar suculência e sabor, não é de se admirar que os cortes mais caros sejam
de carnes com mais gordura intramuscular, o chamado marmoreio. O marmoreio
representa a gordura que fica entremeada ao tecido muscular e seu nome ilustra
bem seu aspecto, uma vez que cortes com bastante desta gordura intramuscular
chegam mesmo a lembrar uma superfície de um mármore vermelho e branco (ou
amarelo, dependendo da cor da gordura).
Ainda que seja vendida por maior
preço, é bom lembrar que o custo de produção desse corte é bastante elevado,
pois a gordura intramuscular é a última a ser depositada, ou seja, trata-se de
um animal abatido muito gordo.
Para minimizar a necessidade de levar
o animal a pesos muito elevados, há raças com maior propensão para marmoreio
que são utilizadas por quem explora o mercado de carnes diferenciadas, como as
raças britânicas (Angus, Hereford, Devon), havendo, ainda, a raça Wagyu, do
Japão, que seria a campeã de marmoreio. O nosso Nelore, opostamente, é do tipo
que produz carne com pouco marmoreio. Nos pesos de abate praticados no Brasil,
e com terminação preponderante com ganhos moderados em pastagem, de fato, o
marmoreio é raro. É um bom exemplo que uma carne não precisa ser muito
gordurosa pode ser ainda saborosa e, contra alguma expectativa negativa, parece
que a carne brasileira tem admiradores ao redor do mundo.
Ainda com relação à carne produzida
no Brasil, o fato dela ter menos gordura tem sido (aparentemente) pouco
explorado no seu marketing, uma vez que a preocupação com a redução de ingestão
de gordura pelos consumidores existe, Inclusive foi, e continua sendo, bastante
explorado pelos produtores de aves.
Dos demais aspectos que podem
interferir na qualidade da carne, o estresse causado por mal manejo pré-abate
pode resultar em grandes prejuízos. Se o animal é submetido às situações
estressantes, grande parte da sua glicose é consumida. É importante ter bons
níveis de glicose, pois é exatamente o ácido lático produzido da degradação
dela no pós-morte que causa acidez no músculo e permite uma série de reações
necessárias para o processo de transformar músculo em carne.
Quando às reações subsequentes, que
correspondem à degradação natural das fibras musculares por enzimas presentes
no próprio músculo, não se processam adequadamente, temos uma carne de baixa
qualidade, conhecida pelo acrônimo DFD (dark, firm and dry), ou seja, escura,
dura e seca.
O interesse crescente em melhorar o
conforto aos animais e o investimento na educação dos envolvidos para a lida
menos agressiva possível ajuda, também, a manter os níveis de glicose corporal
para um adequado abaixamento do pH da carcaça.
Essa preocupação de bom manejo
pré-abate deve se estender ao embarque na fazenda. O envio de lotes homogêneos
(e de preferência que já estejam juntos há algum tempo), o trabalho tranquilo
dos peões, sem correrias desnecessárias, sem cães ameaçando os animais é
importante. Um detalhe importante é que o embarcadouro não deve terminar em
rampa, mas ser projetado para ter um último lance horizontal, pois isso evita
com que os animais batam a garupa na entrada do caminhão boiadeiro, o que gera
perda nessa região de cortes nobres.
O transporte, de preferência, deve
ser feito aproveitando-se os horários mais frescos do dia. Ajuda muito se o
caminhoneiro tiver consciência de que é carga viva e de como ele pode
interferir no bem estar e qualidade do que transporta. Ele deve ser capaz de
avaliar a lotação adequada, fazer espera de 20 minutos antes de iniciar a
viagem, dirigir evitando solavancos e fazer as paradas recomendadas. No caso
das paradas, há exigência legal para isso e ele deve conhecê-la. Felizmente, já
faz algum tempo que tem-se investido bastante em treinamento e, hoje, há um
contingente satisfatório de motoristas bem preparados, para os quais estímulo e
reconhecimento por parte dos pecuaristas ajuda a manter esse ciclo positivo
para a qualidade da carne.
No frigorífico, há ainda outras
estratégias para melhorar a qualidade da carne durante o processamento. Muitos
deles, por exemplo, submetem a carcaça do animal a um forte eletrochoque que
ajuda a amaciar a carne. Em seguida, um corte incompleto é feito no local que
divide o dianteiro do traseiro, o que também contribui para melhorar a maciez.
Por fim, a carcaça é colocada na câmara frigorífica que, idealmente, deveria
ser programada para aumentar o frio de maneira crescente e controlada. Todavia,
isso é impraticável, pois seriam necessárias muitas câmaras frigoríficas para
trabalhar com cada “batelada” de carcaça.
Por fim, ainda pode haver o processo
de maturação, geralmente por 7 ou 14 dias (ou mais), no qual a carne é deixada
em temperaturas baixas para sua conservação, mas em que ocorre atividade das
enzimas que degradam as fibras. Esse processo, normalmente, melhora bastante a
maciez da carne, mas também é feito apenas numa porcentagem pequena do total de
carne produzida.
A recompensa por tanto zelo em todas
as fases é um produto que tem grande apelo de consumo. A carne é um dos
alimentos cujo consumo tem maior resposta de aumento em função de aumento de
poder aquisitivo. O desafio da cadeia é continuar (e reforçar) os motivos que
levam os consumidores terem esse desejo tão grande pela carne.
Nenhum comentário:
Postar um comentário